Sunday, June 03, 2007

... mais cuidado, Pá!

Um gajo é criança. Deve ter 7 ou 8. Pelas minhas contas, mais para os 8. Apanha uma hepatite que só é diagnosticada 3 meses depois, porque apenas em Lourenço Marques o podem analisar e determinar. Um gajo está desidratado e desnutrido, já não se segura nas pernas e tem de ir apanhar sôro todos os dias ao hospital, porque até a água que engole vomita. Um gajo é miúdo, mas percebe e sabe. Sabe das minas que elevam o camião Berliet a não sei quantos metros no ar, com tudo o que vai lá dentro. O mais pequeno Unimog, esse vôa muito mais. Um jeep? Bem ... E a malta sabe que, lá dentro, vai carne e sangue. Sabe que, numa emboscada, ficam, ou fica, para sempre, um número indeterminado de gente. A malta houve a tropa, que desabafa os mêdos de terrores entre si. A malta ouve dissimulada, está calada para não darem por a gente estar a ouvir, ali. A malta precisa. Quer perceber o que está a acontecer. Não quer saber porquê. Porque eles são os maus e a nossa tropa os bons. A mãe suplica, para que venham eles a casa. Eles, recusam. Ela, recusa, aterrorizada, como se tivesse sido insultada: Jamais! Ele, Aqui Não Fica Internado. Trago-o Todos Os Dias e Volta Para Casa. A malta é criança, vai diariamente ao hospital durante um mês, para levar sôro. Ouve os helicópteros Alouete a aterrar a cada 5 minutos e vê o material descarregado a passar-lhe à frente. Gajos de verde a gritarem e a gemêrem, sempre sem braços e pernas, ou já calados. Um gajo aterroriza-se com o constante espectáculo de sangue. No hospital há sempre sangue, é sangue por todo o lado. Um gajo tenta distrair-se, conta-lhes os membros que faltam, ou os que restaram. Um gajo tem, sempre, que manter a cabeça ocupada. Com o que à frente tem. O sôro é lento. Dura, sempre, uma eternidade. Mas um gajo nunca percebeu porque passou aquele que estava cortado ao meio, separado abaixo do peito, até as tripas estavam separadas, penduradas e a balançar. A malta julgava que ali só entravam os que, ainda, podiam ter algum conserto, que os outros entravam pelo outro lado. Afinal, não, entravam todos pelo mesmo lado. Com franqueza, a malta é criança, vive no meio duma, tem de saber e já sabe o que é a guerra. Mas podiam ter tido mais cuidado. Depois de saber a lógica da entrada, a malta conta os calados e faz mais contas. Ao número de caixões enflorados no enterro diário, o que atravessa a cidade às 5 da tarde. Não o do mesmo dia, mas dois depois. A malta já aprendeu. Nunca são menos do que 10. Às vezes, são muitos mais, porque a "coisa" aqueceu. Um gajo julgava que esta malta "morrida" voltava à terra natal, à chamada "metrópole". Estes gajos não nasceram aqui e um gajo não percebe, se é mentira ou se não percebe nada do que é um enterro, se são enterrados ou desviados para outro transporte que vai dar ao avião. A malta não consegue comer um bife. Lembra-lhe carne e sangue. Prefere omeletes e ovos mexidos. Mas não pode, tem ou teve hepatite. A malta já não consegue ir aos pássaros. Já não há prazer em caçar. A malta é miúda, mas não dorme. À noite, fica alerta, à escuta, de ouvir os Alouete's, os que vão naquela direcção, tenta imaginar o que vai lá dentro. Faz contas, aos que vivem e aos que já não terão concerto. Quantos serão, depois, os do combóio florido, o das 5 da tarde. Dessas tardes em que não há brincadeiras de índios e "cowboys", nem de polícias e ladrões. A malta brinca aos comandos e "turras", finge que dispara, ou uma G3, ou uma bazooca. Brinca às armadilhas e emboscadas. Aos 11, a malta já acorda à noite, com falta de ar e o coração aos saltos. Só percebem aos 12. Durmam bem. Há malta que acha que sim, que não precisa, que nunca mais é dia, que a escola nunca mais vem. A malta lê. Dos 7 aos 11, lê tudo o que há para lêr. Já não gosta de palermices, já não gosta nem dos Cinco nem dos Sete. Atira-se a Hemingway, a Stefan Zweig, à Pearl Buck em histórias da China. A dezenas de outros, de que já não se lembra. A livros proibidos. O "4 ismos" não é proibido, mas o Pai foi chamado à Pide, porque não devia ser lido. O livro passou para a frente da estante, em lugar mais visível, para quem o quisesse lêr e vêr. A malta sonha o mundo, às vezes até às 4 da manhã. A malta desculpa-se, tem que acabar o livro. A malta já não toca piano. O piano já não toca com alegria. A malta já não toca no piano. Não lhe gosta a côr. É igual à dos caixões. A malta não suporta a côr castanho escura dos móveis. É igual à dos caixões. Não suporta as decorações com o vermelho na parêde. Vê sangue. Cheira a sangue. A malta tem terror de ir ao hospital. Tem mêdo de estar doente. Oculta a febre, a dôr de garganta. Os Pais reparam, olham-se em silêncio. Exigem que o médico muito ocupado com a tropa passe à visita em casa. Ele prefere o consultório, sem hora marcada. Os Pais não vergam. É em casa. 12 anos. Comunicam. Vamos embora para Portugal, voltamos daqui a um ano, para Lourenço Marques. A vida acabou-se, no fim da infância em Tete. A malta recusa. Não gosta da metrópole, só há frio, as pessoas são diferentes, são frias, nunca se pode sair de casa. A guerra tornou-se o nosso modo de vida, de loucura, tudo gira à volta dela. Aqui, somos livres, temos cão, esse leão da rodésia que dava pelo estranho nome de Japão, a gata Tomazina e a sua recente ninhada, os caminhos infindáveis a descobrir de bicleta, o sempre misterioso rio Zambeze, para onde a malta se retirava depois dos sábados da mocidade portuguesa. Aqui, apesar do ambimente de morte, havia, também, muita e muito mais vida. E mais chegava, no rebuliço de gentes diferentes, pela barragem de Cabora Bassa. Por causa de tudo. Por ser, afinal, a nossa cidade natal por adopção, com ou sem guerra. Por, apesar da guerra, ser ainda esta a nossa única memória da felicidade. Ficámos a saber que a Mãe estava muito doente, já não podia ser adiado. Anuímos e murmurámos um apressado Adeus. Sem lágrimas. Apenas coragem. Na minha alma, nunca mais consegui acolher outro enraízamento. Perdi-o para sempre.

3 Comments:

Blogger Lollipops said...

este desenraizamento, sem mais nem menos, perdi-o no dia 28 de setembro de 1982. no dia em que olhei para o meu cão pela última ez, no dia em que me enfiaram num avião comn destino a lisboa, um apartamento pequeno demais para quem cresceu na barragem de cabora bassa.

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